09/08/2007

Vidas

Tenho um vizinho que tem problemas.
O homem é esquizofrénico. E para além disso há ali mais qualquer coisa que não bate certo.
Mora com o irmão, que também tem alguns problemas, e com a irmã, que toma conta dos dois.
Já se tentou matar uma série de vezes e, por uma série de vezes os médicos andaram a bater à porta para o tentarem acalmar.
Contudo, e apesar de ser um gajo altamente estranho, é muito simpático.
Sim, é comum encontrá-lo à noite na rua, sentado na porta do prédio e pedir-me dinheiro para beber um café. Quando chego da faculdade, ou quando vou por o lixo no caixote... lá está ele. 'Vizinho, arranja-me uma moeda para o café?'. Eu dou mesmo sem perguntar onde ele irá beber o café aquela hora... possivelmente vai com os amigos que só ele consegue ver, a um café imaginário cuja localização eu desconheço.
De todas as pessoas que moram neste bairro bafiento, foi sempre o único que me tratou respeitosamente, independentemente de me ver de fato e pasta, de calças largas e camisolas por fora das mesmas, ou até mesmo quando vou só em calções por o lixo no caixote do prédio. Sempre, da mesma forma, largou um semi-sorriso (o tipo não se ri muito) e cumprimentou-me: "Olá vizinho, como está? Passou bem?". Por vezes, quando não está em delírio e se lembra que tenho um curso, cumprimenta-me pelo título. Adora chamar-me Sr. Engenheiro. Mesmo quando eu teimo que não quero que me trate assim... basta chamar-me pelo nome, ou por 'vizinho'. Pede desculpa e faz um ar de aceitação... e depois esquece-se e volta a fazer o mesmo. Não me chateio, o gajo é muito fixe.

Uma vez, há já alguns anos, devia eu andar ainda no secundário, passou na televisão uma entrevista a um ex-ladrão que tinha apanhado uma pena brutal e estava prestes a sair.
Claro que ao sair da prisão, estaria já na terceira idade, tendo os óbvios problemas de como iria sobreviver cá fora. Mais ou menos o que acontecia com os Condenados de Shawshank.
Foi preso por, no seu tempo, ter sido o maior ladrão de ourivesarias português.
Tornou-se conhecido por 'limpar' todas as ourivesarias que se propunha assaltar. Se bem me lembro, nunca usou uma arma e orgulhava-se disso. Da arte do roubo.
Contudo, havia uma peça que nunca roubava.
O homem, o temido ladrão, o criminoso, nunca roubou em toda a sua vida 'profissional' os corações de ouro, de prata, do que fosse, que estivessem na ourivesaria.
Quando o jornalista lhe perguntou o motivo, respondeu com um sorriso e o ar mais natural deste mundo: "Porque os corações não se roubam, conquistam-se".
Creio que foi uma lição de vida que este Pato aprendeu e que, como está hoje a provar ao relembrar esta história para todos os que a quiserem ler, não esqueceu.

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