Uma das coisas que os anti-histamínicos têm de bom é que, tomados à noite, fazem um efeito brutal durante o dia. Um efeito de calma e segurança, como se tivéssemos toda a santa paciência do mundo para aturar toda a gente, até caírmos a babar em cima de qualquer coisa. Bom, é um facto que pouca coisas me fazem cair a babar... mas os anti-histamínicos são uma delas. Infelizmente o período de sonolência ocorre entre as 15 e as 22 horas, pelo que a esta hora já ando novamente sem conseguir pregar olho. Que se lixe, é da maneira que produzo mais para os blogs... na falta de melhor actividade, escreve-se.
Algo que me têm sugerido ultimamente, é o conceito de traição.
Eu explico.
Basicamente, evito um pouco conviver com novas pessoas que se cruzam comigo, para conviver com amigos que, embora relativamente recentes, considero como amigos de longa data. Como tal, as pessoas que conheço há menos tempo, acham que sou um traidor porque prefiro ir almoçar e sair com a malta que conheço há mais tempo, do que fazer efectivamente novas amizades.
Compreendo o ponto de vista. De facto, é chato um gajo andar sempre a cortar-se para conviver com pessoal que nem sequer vê diariamente.
"Almoças connosco?"
"Ah, não... vou almoçar com um amigo..."
Bom, mas, na realidade, penso que não se tratará de traição ou coisa parecida.
Os patos têm um grande coração, é verdade. E, como tal, há um grande número de pessoas (normalmente outros patos) que encontram um espaço lá dentro.
A questão é que os patos não fazem amizades com facilidade. Temos o mais variado tipo de contactos mas, somos muito desconfiados. É preciso muito, para um pato abrir o coração de forma a conseguir encaixar mais alguém lá dentro. E, embora o mais provável seja que nunca refira tal coisa, é preciso ser alguém muito, mas mesmo muito especial, para encontrar canto dentro do duro coração de um pato. Claro que toda a gente tem lugar, afinal, não sou nenhum animal selavagem... contudo, existe um espaço, logo ali a seguir ao ventrículo esquerdo (chamemos-lhe Espaço A), onde cabem aqueles por quem se seria capaz de fazer qualquer coisa. Esses sim, têm a zona mais reservada, os melhores lugares... e, curiosamente, o mais provável é que nunca o saibam. Os patos têm destas coisas, falam metaforicamente, referem panos e paninhos, até podem ter blogs mas, são reservados. Poucos sabem tudo sobre eles... e os que sabem quase tudo, são os poucos que têm lugar no Espaço A. O problema é que para se saber alguma coisa de relevante acerca do Pato, é necessário tempo; é necessário chegar-se a um nível de confiança não acessível ao comum dos patos... e tal demora tempo. E nesse espaço de tempo, é necessário manter a chama e o círculo de confiança com quem já lá está; infelizmente, não há tempo para tudo... a vida não é fácil, não podemos passar o dia a falar, sem fazer nada, e os poucos momentos em que podemos partilhar um pouco mais de nós no Espaço A, são momentos de grande importância, que me recuso a deitar ao ar.
Assim, ao ter de optar entre fazer novas amizades profundas e a passar o pouco tempo que tenho a conviver com aquela que consideramos a nossa verdadeira família, prefiro logicamente a segunda opção.
São poucos, é um facto. Eventualmente um conjunto que se pode contar pelos dedos. Mas prefiro perder a oportunidade de fazer dez novos amigos, a não dar a devida atenção a alguém que me acompanhou sempre que precisei.
Na realidade, quando um dia acordamos e percebemos que estamos sós no mundo, são aqueles que se encontram no Espaço A que permanecem ao nosso lado. Nos momentos felizes ou nas piores situações em que nos encontramos, sabemos que temos alguém ali.
Podem ter idade para ser nossos pais, mães, irmãos, irmãs, ou até algo mais íntimo. Mas, na realidade, são pessoas de quem não quero abdicar.
Entendo que seja complexo para quem está de fora, completamente deslocalizado do contexto em que o afirmo. Posso dar até a imagem de que sou um tipo com quem não se pode contar; anti-social, imbecil ou arrogante. Simplesmente, e independentemente do que possam pensar, tal como os elementos do Espaço A estiveram lá sempre para mim, também eu estarei sempre lá para eles.
Não tenho o conceito de 'Melhor Amigo'... isso é uma parvoíce.
Na realidade, assusta-me saber que um dia vou casar e vou ter de escolher alguém para Padrinho. Por mim, colocava-os a todos no altar.
Como tantas outras coisas, não é a quantidade de pessoas especiais que fazem de nós melhores ou piores seres; é a qualidade e a força do que sentimos por elas, é aquilo que aprendemos juntos e tudo o que fazemos que nos fazem criar uma verdadeira rede de atracção onde, independentemente da situação, da hora ou local em que ocorra, nos fazem sobreviver.
São os agentes do Espaço A que são convocados para os aniversários, para a festa, para a borga ou para as situações mais constrangedoras; são os agentes do Espaço A que têm sempre a atenção devida e com quem nos preocupamos; é aos agentes do Espaço A que nunca referimos sequer a existência de tal espaço.
É um mito.
Não existe.
E eu devo estar é a delirar... os anti-histamínicos andam a transformar-me num pato branco.
Sem comentários:
Enviar um comentário